Docência por missão de vida: conheça a história da professora Maria Guerra

Com dificuldades familiares, a servidora da Ufal conta o que precisou enfrentar e superar para conquistar o sonho de ser professora

16/10/2017 09h09 - Atualizado em 22/11/2021 às 09h05
A reitora Valéria Correia deu a posse à professora da Ufal, Maria Guerra

A reitora Valéria Correia deu a posse à professora da Ufal, Maria Guerra

Thâmara Gonzaga e Manuella Soares – jornalistas

Na semana em que se comemora o Dia do Professor, a Ufal vai mostrar uma história de superação e persistência de uma mulher que enxergou na carreira docente uma missão. Numa época em que o papel do profissional é questionado e, muitas vezes, desvalorizado, Maria Guerra representa a parte mais nobre: a de professores que amam o que fazem, que seguem na docência por motivações diversas, porque cada um tem uma história de vida diferente até chegar à sala de aula, mas a dedicação ao ensino é por acreditar na educação como transformadora.

A história de Maria José Guerra, professora do Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI) da Ufal, assemelha-se a trajetórias de tantos brasileiros que, numa luta diária persistente, não se conformam com as condições de vida do meio social no qual nasceram. Meio esse, muitas vezes, marcado pelas dificuldades e pela falta de oportunidade.

Natural de Inhapi, cidade do Alto Sertão de Alagoas, Maria Guerra é filha de agricultores, tem sete irmãos, sendo cinco homens e duas mulheres, e é a única com formação superior. Estudar para ela sempre foi um desafio, pois desde cedo precisou trabalhar para ajudar na subsistência da família.

Ela não esmoreceu diante das adversidades e hoje está onde sonhou: no cargo de docente de uma instituição federal de ensino. “Quando criança, fazia bonecos com os pedaços de madeira que estavam soltando da mesa do santo. Cada dia puxava um pedacinho até que formava várias bonecas e brincava de ser professora numa casinha construída com as cascas do feijão batido”, recorda, com orgulho, diante do que conquistou.

O trabalho na infância

Aos oito anos de idade, conta a servidora da Ufal, a família se mudou para Delmiro Gouveia, também situada no Sertão de Alagoas. Lá, ela começou a trabalhar com a venda de picolé para ajudar nas despesas. “Vendia numa caixinha de isopor, logo fiquei conhecida por galeguinha do picolé. Com o passar dos meses, a caixinha ficou pequena para a clientela que tinha conquistado, consequentemente, foi trocada por outra maior e, depois, por um carrinho”, lembra.

Foram mais de seis anos nessa atividade, quando a ocupação foi trocada pela venda do leite de porta em porta. “Esse trabalho realizei por um ano e nove meses e só parei por conta do fiado. Tive que trabalhar como ‘secretária do lar’ para terminar de pagar o leite que pegava para revender”, recorda, ao acrescentar que também trabalhou como garçonete.

O acesso à educação veio muito depois de conhecer o compromisso com o trabalho remunerado. “Antes de começar a estudar, já sabia passar troco e todos os procedimentos da venda”, conta. Mas a servidora da Ufal relata que o fascínio pelo conhecimento sempre a acompanhou. “Lembro que entre os 4 e 5 anos, morando em Inhapi, já gostava muito de estudar. Pegava jornal de embrulho que vinha nas compras e uma ponta de caneta velha, encontrada por trás do vaso de feijão. Colocava um palito de fósforo e começava a desenvolver os primeiros passos da coordenação motora, sem saber o que significava. Subia no pé de umbuzeiro e viajava pelo infinito da imaginação. O tempo passou e esta recordação ficou registrada no inconsciente da minha memória, a qual tem um poder muito forte de inspiração relacionado aos estudos”, relembra.

Quando finalmente conseguiu frequentar uma sala de aula, Maria teve que conciliar a rotina de estudos com o trabalho, além de lidar com o “entendimento” dos pais. “Quando comecei a estudar na escola senti muitas dificuldades, por causa dos meus pais que pensavam que estudar era somente no colégio. Por esse motivo, sofri muito e cheguei a repetir o ano escolar. Tinha um sentimento de inferioridade, pois minhas colegas de classe, no período de provas, estudavam muito e eu não tinha tempo para estudar, pois tinha que trabalhar, cuidar dos meus irmãos e da casa”, relata. “Sentia-me inferior também porque era estrábica e por muitas vezes fui chamada de olho trocado”, conta.

Ela afirma que passou por muitas situações constrangedoras por causa da deficiência, mas não desanimou. Em 2005, conseguiu fazer uma cirurgia corretiva no olho esquerdo. “Tenho minhas limitações, mas sigo realizando minhas atividades alegre e feliz. Faço teatro, arte circense e ando até de perna de pau”, conta entusiasmada.

 

Acolhimento, estudo e aprovação em concursos públicos

A professora da Ufal conta que o sentimento de inferioridade foi diminuindo e dando espaço ao   fortalecimento dos próprios sonhos quando foi convidada a participar do grupo infanto-juvenil da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), iniciativa ligada à Igreja Católica.

“O grupo fortaleceu meus sonhos. Mostrou-me a enfrentar com muita fé e garra para mudar esses paradigmas que corroem a dignidade humana. Esse movimento educativo freiriano [do educador brasileiro Paulo Freire], apresentou-me, ao mesmo tempo, uma aprendizagem pedagógica e transformadora, fruto da PJMP, que promoveu educação na fé e educação popular como instrumento de transformação nos grupos de bases”, destaca. “Enfocava em atividades que compunham o processo de formação na ação, com intenção política, visando à formação infanto-juvenil, como meio de ascensão sociocultural entrelaçada à transformação do cenário existente”, esclarece.

Durante esse período, ela concluiu o ensino médio e a graduação em Pedagogia. Coordenou a Pastoral da Juventude, na Paróquia de Delmiro Gouveia, e também na Diocese de Palmeira dos Índios, atuando como facilitadora, educadora popular e participando de encontros nacionais.

Em 2010, candidatou-se ao cargo de conselheira tutelar de Delmiro Gouveia e ficou na suplência. Conseguiu assumir no ano seguinte, mas acabou renunciando, em 2013, para tomar posse no cargo de professora do ensino fundamental do município de Água Branca, vaga conquistada por meio de concurso público.

Maria prosseguiu sua trajetória em busca de realizar seus objetivos por meio do estudo. “Meu grande sonho era ser servidora pública federal”, afirma. Em março de 2015, conta, pediu exoneração do cargo de professora em Água Branca para tomar posse no cargo de Assistente de Alunos do Instituto Federal da Bahia (IFBA). “Passei no certame na vaga de pessoas com deficiência, com garantia de direito pela súmula 377 do STJ [Supremo Tribunal de Justiça], uma vez que tenho visão monocular”, afirma.

Única da família que conseguiu aprovação em um concurso público, ela reforça que uma de suas grandes motivações continua ser ajudar a família. Alguns de seus irmãos ainda não concluíram nem o ensino fundamental. “Eles trabalhavam nas construções civis, mas, com a situação atual do país, muitos deles estão desempregados. Estou incentivando a estudarem uma graduação e para os que não terminaram o fundamental e o médio, a fazerem o curso de Jovens e Adultos”, afirma.

Chegada à Ufal

O início das atividades de Maria Guerra na Universidade Federal de Alagoas foi em abril de 2017, quando tomou posse no cargo de professora de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) do Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI).

Especialista em Educação em Direitos Humanos e Diversidade pela Ufal e concluindo mais uma especialização na área de Educação Pobreza e Desigualdade Social pela Federal da Bahia (UFBA), a docente relata a satisfação de fazer parte do quadro de servidores da instituição alagoana. “Sou muito feliz e desejo contribuir no processo de desenvolvimento das crianças, dando o melhor de mim. Sigo estudando e me preparando para, em breve, cursar o mestrado em Educação”, afirma a docente ao acrescentar que sonha em escrever um livro da sua trajetória de vida, além de ver sua história contada em um documentário ou curta-metragem.

Compromisso da Ufal com a educação

Entre os mais de 26 mil alunos da Universidade Federal de Alagoas, quase 7,5 mil escolheram ser professor. Este é o número de matriculados nos 39 cursos de licenciatura da Ufal. A maior instituição pública de ensino superior de Alagoas tem o compromisso de formar cerca de 700 pessoas habilitadas a exercer a docência na educação básica, todos os anos.

“O propósito é formar os professores numa perspectiva teórico-prática, política, reflexiva e de intervenção da realidade. Então, a gente entende que o papel da Universidade tem sido em fomentar e consolidar uma formação ampla, humanística, técnica, pedagógica e de mudança da realidade. Seja essa realidade individual de cada aluno, seja no coletivo, mudando os contextos sociais. É papel da Universidade formar pensadores da educação”, destacou a pró-reitora de Graduação da Ufal, Sandra Regina Paz.

Há mais de uma década, a Ufal também leva oportunidades para quem mora no interior do Estado e sonha em ser professor, inclusive lá no sertão de Maria Guerra. São 31 cursos presenciais de licenciatura nas cidades de Arapiraca, Penedo e Delmiro Gouveia. Só nas unidades fora de sede estão matriculados 3,4 mil alunos que acreditam na profissão docente.

Maria Guerra é uma entre os quase 1,4 mil professores da Ufal, que procuram se qualificar para o ensino de qualidade. Já são cerca de 700 com título de doutorado. A meta de se tornar docente ela já alcançou, mas a história continua. “Acredito que minha missão perante Deus e os homens é lutar pela vida digna de crianças, adolescentes e jovens, principalmente, os que vivem em situação de vulnerabilidade social. Esta é a minha identidade e, se por ventura, perdê-la, a essência do nome Maria Guerra desaparece”, conclui.