Trabalho propõe requalificação de vila desapropriada

Local teria novas condições de moradia respeitando os elementos físico-territoriais e a função social da propriedade urbana

20/04/2016 11h50 - Atualizado em 28/04/2016 às 10h11
Visão geral das casas da proposta que abrigam as 110 famílias de pescadores de Jaraguá

Visão geral das casas da proposta que abrigam as 110 famílias de pescadores de Jaraguá

Deriky Pereira – jornalista colaborador

Vamos passear um pouco por Maceió? Pois bem, que tal falarmos de um espaço de importante significado cultural, localizado em um dos bairros mais tradicionais que, no entanto, não possui o devido reconhecimento? Consegue identificar? Bem, se ainda não conseguiu, ler que o espaço está localizado em frente à réplica da Estátua da Liberdade e próximo à Praia da Avenida, ajuda a assimilar? Pois é… Com essas dicas, fica mais fácil perceber que estamos falando da Vila dos Pescadores, no Jaraguá, que foi desapropriada em junho de 2015, levando consigo uma história de mais de 60 anos.

Intitulado A Vila da Enseada: um anteprojeto de requalificação arquitetônica-paisagística da Vila de Pescadores de Jaraguá a partir dos valores patrimoniais, o Trabalho Final de Graduação (TFG) de Beatriz Lyra, recém-graduada no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, teve como orientadora a professora Lúcia Hidaka e apresenta uma discussão sobre a degradação do espaço, sua história em Maceió, além de trazer uma caracterização e diagnóstico detalhados da área.

De acordo com a arquiteta, com o passar dos anos, a Vila dos Pescadores de Jaraguá enfrentou processo de favelização agravado pela chegada de moradores externos à comunidade tradicional, e que desde 1984, o local resistiu a todas as tentativas de desapropriação, sofrendo, assim, com as más condições de vivência por conta da precariedade de sistemas básicos ambientais e de infraestrutura, por exemplo.

A monografia traz então o olhar da academia para essa discussão, com uma abordagem imbuída dos princípios de reconhecimento e patrimônio cultural, qualidade da habitação, valorização do espaço urbano e da paisagem. Além disso, propõe reflexões sobre a função social da propriedade urbana e da cidade, e o registrar da apropriação do espaço pela Vila nos seus últimos anos na paisagem do bairro do Jaraguá”, salienta.

Projetando a Vila da Enseada

Beatriz nos explica que, antes de tudo, era preciso pensar num espaço que mantivesse a essência do cenário histórico do qual este território faz parte mesmo sendo uma proposta contemporânea, já que, por estar num bairro de reconhecimento patrimonial estadual, firma-se a adoção de certos cuidados ao imaginar uma intervenção na área.

Para chegar ao anteprojeto arquitetônico-paisagístico, a estratégia metodológica consistiu em, com base nos atributos extraídos de pesquisa prévia, analisar sob os aspectos físico-territoriais, socioeconômicos e ambientais, a área de intervenção para obter um diagnóstico desse espaço e da comunidade que nele habita. O diagnóstico serviu de subsídio para a conceituação da proposta e para a criação formal do projeto”, explicou.

Portanto, os levantamentos realizados no próprio local e as análises do diagnóstico revelaram má qualidade da infraestrutura do espaço e dos serviços de água e energia, improviso do Ponto de Cultura e espaços de lazer, bem como a inadequação dos espaços direcionados ao tratamento dos pescados e a precariedade das habitações.

Em contrapartida, sua composição por um conjunto de edificações históricas e monumentos, o Porto de Maceió que se encontra com a Vila, além de toda a vista do mar, integra suas potencialidades. “Quanto aos atributos revelados, o traçado urbano de ruas estreitas, os casarios homogêneos de gabarito padrão, os largos que quebram a perspectiva de repetição das fachadas, as casas geminadas, a pesca e, a relação entre o mar, enseada e a Vila, tudo isso expressa os valores histórico, paisagístico, arquitetônico, cultural e social de Jaraguá”, explica.

E por conta desses contrastes surge a proposta da Vila da Enseada, que estaria localizada na Avenida Cícero Toledo, contaria com 110 residências, uma fábrica de gelo, dois restaurantes, um bar, três quiosques, duas quadras poliesportivas, um anfiteatro, galerias de oficinas e das artes, ciclovia, além de um ponto de aluguel de bicicletas e um bicicletário. O projeto também englobaria três estaleiros para fabricação e conserto de embarcações, uma garagem náutica, espaços ao ar livre com áreas de uso coletivo, e o Centro Pesqueiro.

As entradas principais se dariam entre o Ponto de Cultura e o setor residencial; na lateral, junto ao setor gastronômico; e pelo setor náutico. Todas possibilitariam a entrada do usuário a pé ou de bicicleta, já que há calçada e ciclovia nas margens do terreno. A ciclovia percorre toda a calçada voltada para a avenida principal e se conecta com todos os setores, adentrando nas imediações do Ponto de Cultura, sendo direcionada para o setor náutico e para a beira da orla marítima”, direciona.

A arquiteta explica ainda que no acesso lateral, estaria previsto um estacionamento projetado que viabiliza acesso de Pessoas com Deficiência (PcD), além do carregamento e descarregamento de materiais, clientes em compra, embarque e desembarque de passageiros. “Ele não visa privilegiar os automóveis e sim facilitar o acesso dos usuários, pois não seria viável nem para os PcDs, nem para os compradores de pescados, e tampouco para os funcionários dos estabelecimentos alimentícios, locomoverem-se do estacionamento de Jaraguá e atravessar a movimentada Avenida [Cícero Toledo] para transportar produtos ou chegar ao seu destino”, diz.

Função social da propriedade urbana

Beatriz abre espaço, também, para revelar o que é a função social da propriedade urbana, visto que seu trabalho se justifica neste ponto. Conforme estabelece o Estatuto da Cidade (2001): “A terra urbana tem de cumprir a sua melhor função em benefício da sociedade. É o que a lei chama de função social da propriedade urbana e da cidade. Ou seja, o melhor uso para cada pedaço da cidade deve ser discutido e acordado entre todos os membros da sociedade”.

Diante disso, o projeto da Vila da Enseada transcende o limite físico-territorial do Setor de Preservação de Entorno (SPE) previsto somente para a área onde a Vila estava assentada, e justifica-se nesta lei. Dessa maneira, foi pensado para valorizar o potencial paisagístico, cultural e histórico, estimulando atividades que podem enriquecer socioeconomicamente este lugar por meio do crescimento da relação entre habitação, turismo, lazer e comércio.

Moradias e espaço de lazer

As residências da Vila da Enseada foram pensadas para abrigar famílias de pescadores, numa área de três blocos sendo: um para dormitórios e banheiro; outro para cozinha e lavanderia e o terceiro, que liga mesa de refeições e sala de estar. O TFG revela que elas podem ter configuração com poucas divisões internas, de dois a três quartos e iluminação direta para os ambientes. Para construção, o PVC foi o material pensado.

Para escolha do PVC foram avaliados a durabilidade, o fator de oxidação por ser um projeto à beira-mar, a sustentabilidade, a velocidade da construção e a viabilidade da mão de obra. Ele é resistente à maioria dos reagentes químicos, tem vida útil superior a cem anos, apresenta capacidade de reaproveitamento e reciclagem elevada, resistente à ação de fungos, bactérias, insetos, roedores e às intempéries, incluindo a maresia”, revela Beatriz.

Já o Setor Cultural e de Lazer seria voltado, principalmente, ao público infanto-juvenil. No Ponto da Cultura Enseada das Canoas: Yar-á-guá Cultural, eles continuariam a aprender danças como maracatu, a fabricação dos instrumentos da dança, a pintar em telas de tecido, a fotografar e etc. Teria, também, um anfiteatro com palco para apresentações e telão para sessões de filmes e outras mídias.

Haveria, ainda, uma arquibancada com design em forma de ladeira para garantir a acessibilidade. Este ambiente serviria, também, para contemplação onde as pessoas poderiam usufruir da vista da natureza e se deleitar em boas leituras, ou conversas casuais, dentre outras atividades individuais ou coletivas”, explica Beatriz Lyra. As quadras poliesportivas, a ciclovia, e o ponto para o aluguel de bicicletas também estão ligados a esse espaço.

Potencialização da Vila enquanto vocação patrimonial

Beatriz nos conta que os valores de Jaraguá e da Vila dos Pescadores foram responsáveis pelo direcionamento desta proposta. “O reconhecimento dos valores e atributos foi o primeiro passo para esta possível intervenção na área. Isto porque o conhecimento do que deveria ser respeitado no desenvolvimento do projeto, favoreceu a concepção formal de cada edificação de modo a interferir minimamente na ambiência do entorno”, explica.

Ela revela ainda que a requalificação do espaço, transformando-o em Vila da Enseada, se faz necessária para, além de contemplar interesses diversos, cumprir um papel social. Com isso, também, potencializar a antiga Vila dos Pescadores enquanto vocação patrimonial, dando destaque aos seus valores, priorizando a habitação, aliando atividades econômicas do comércio, serviço e turismo. Ou seja, a Vila da Enseada tem enfoque residencial sem perder sua essência cultural como respeito e preocupação a esses elementos.

“O trabalho uniu os valores patrimoniais ao uso residencial, cultural, comercial e de produção, buscando fortalecer a vocação turística do lugar e manter os aspectos tradicionais da comunidade pesqueira, além de representar a melhoria na qualidade de vida desses habitantes. É, ainda, expressão do diálogo entre a paisagem, o urbanismo, a arquitetura e a herança patrimonial”, conclui Beatriz Lyra.