Como transformar sonhos em realidade

Seis irmãs venceram barreiras, preconceitos e mudaram suas vidas e a da família quando a Universidade chegou ao Sertão

02/10/2015 12h23 - Atualizado em 03/10/2015 às 08h38
As universitárias Raquel, Maria José, Rosineide, Raqueline, Rosivânia e Rosilene, filhas de seu Ednaldo e dona Aparecida (Fotos: Jônatas Medeiros)

As universitárias Raquel, Maria José, Rosineide, Raqueline, Rosivânia e Rosilene, filhas de seu Ednaldo e dona Aparecida (Fotos: Jônatas Medeiros)

Simoneide Araújo – jornalista

Como disse Euclides da Cunha em Os Sertões, o sertanejo é, antes de tudo, um forte. E é num cenário árido e sofrido que surge a história de Maria Rosineide Gonçalves, 25, uma jovem determinada que venceu barreiras econômicas e de preconceito para chegar ao ensino superior. De uma família de cinco homens e nove mulheres, Rosineide é a primeira das filhas de seu José Ednaldo Gonçalves e de dona Maria Aparecida dos Santos Gonçalves a entrar na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Uma menina de origem pobre, que estudou em escola pública de Delmiro Gouveia e conseguiu ser aprovada em Engenharia Civil na Ufal, sem fazer cursinho e na primeira tentativa. Para ela, foi um sonho que virou realidade.

Mas por que uma jovem do alto sertão decidiu fazer Engenharia? Ela responde sem deixar dúvida: “Sempre sonhei em fazer mesmo sem saber o que era esse curso. Na verdade, eu queria Engenharia ou Psicologia, que também não sei por quê. Conclui o ensino médio em 2007, mas não tinha condições de sair de Delmiro para fazer faculdade. Só que em 2009, quando fui me inscrever para o concurso do IBGE, uma amiga me disse que estava havendo inscrição para vestibular na Ufal. Eu duvidei porque não existia nem prédio”, questionou.

Mesmo não acreditando, Rosineide foi convencida a fazer sua inscrição. “Foi uma correria para arrumar o dinheiro e consegui no último dia do prazo, mas quando cheguei ao local, não tinha internet. Aí um amigo se ofereceu para fazer a inscrição em Paulo Afonso, já que ele ia estudar lá; e assim foi feito. Faltando cinco minutos para encerrar, ele conseguiu me inscrever; foi um sufoco!”, revelou.

Com a inscrição garantida, Rosineide sabia que teria de correr contra o tempo para revisar tudo e recuperar os dois anos que ficou sem estudar. Faltavam 45 dias para as provas e ela teve de reunir todos os seus livros e de suas irmãs para estudar tudo a tempo. Rosineide estudava todos os dias, de 7h da manhã até 11h da noite. “Onde eu morava não tinha energia elétrica e eu estudava com candeeiro”, revelou.

Além da dificuldade para estudar, Rosineide também enfrentava o preconceito e a descrença dos parentes. “Em um dos dias da prova, passei antes na casa de minha vó, que estava doente, e meu avô perguntou para onde eu ia e avisei que estava indo fazer prova do vestibular para a Ufal. Fiquei arrasada porque ele me respondeu dizendo: '- minha filha, você está pensando que isso é pra qualquer um? Aí eu respondi de imediato: '- E por acaso o senhor pensa que sou qualquer um?'. Saí de lá e fui chorando a estrada toda”, lembrou emocionada, ao dizer que nesse dia conseguiu tirar a maior nota do processo seletivo.

45ª colocada

Após a etapa das provas, a ansiedade era pelo resultado. No dia que saiu a lista, Rosineide não conseguiu ver. No dia seguinte, o pai, seu Ednaldo, chegou em casa do trabalho com um pacote. “Ele disse, Rosineide, naquela caixa tem uns papeis para você. Eu nem imaginava o que seria, mas quando eu vi numa das listas que tinha um nome marcado com um xis, não acreditei; era o meu. Fui a 45ª colocada das 80 vagas ofertadas”, disse, com os olhos cheios de lágrimas.

Rosineide entrou na Ufal em 2010.2 e, de lá para cá, vem tentando vencer as dificuldades. Ela está no oitavo período e conta que desde que entrou na Universidade conseguiu um auxílio e, após um ano meio, foi selecionada para um projeto de pesquisa, coordenado pela professora Viviane Costa, atual coordenadora do curso de Engenharia Civil. Foi assim que Neide, como é chamada pela família, conseguiu uma bolsa pelo Programa de Ações Interdisciplinares (Painter), o que garantiu sua permanência no curso com mais tranquilidade.

Determinada, Rosineide sabe o que quer e diz ter traçado seu caminho, vencendo cada etapa. “Sempre quis fazer faculdade, só não sabia como, porque não tinha condições financeiras. Na hora que chegou a oportunidade, com a Ufal em Delmiro, eu agarrei a chance e estou vencendo a cada dia”, contou.

Próximo de concluir o curso, ela faz planos para ajudar a família, mas não quer parar de estudar. “Quero trabalhar para melhorar a condição da minha família. Mas também quero seguir carreira acadêmica, quero fazer mestrado e continuar estudando”, declarou.


Rosilene, Maria José, Rosineide, Raqueline e Raquel no Campus do Sertão, onde estudamExemplo seguido na comunidade

Rosineide está sendo um exemplo para as irmãs Rosilene, Raquel, Maria José e Raqueline, que também estudam na Ufal, em Delmiro, e para Rosivânia, selecionada na 3ª chamada do Sisu 2015. Ela vai cursar Pedagogia e é a sexta filha de seu Ednaldo a entrar na Universidade. “Neide é um exemplo não só pra nós, mas também para o povoado onde a gente vive. Tem alguns jovens que já pensam em fazer Ufal, porque estão vendo que conseguimos. Mas é engraçado, quando Neide chega nos lugares todo mundo se cala, fica tudo tímido. Achamos que as pessoas têm vergonha de falar errado ou coisa do tipo”, revelaram.

Raquel dos Santos Gonçalves, 22, está no 5º período de Pedagogia, mas seu sonho é fazer Biologia. “Queria muito ter feito Biologia, mas infelizmente não tem o curso em Delmiro e é muito difícil sair daqui. Escolhi Pedagogia e me apaixonei pelo curso. Quero me formar, trabalhar e, depois, quem sabe, fazer Biologia”, previu.

Para Raquel, ter entrado na Ufal foi a realização de um sonho. “Se a gente não tivesse na Universidade, nosso caminho teria sido apenas a roça. “A Ufal é uma oportunidade de mudarmos de vida. Sem ela, nossa família não teria como estudar fora; nenhuma de nós teria condições de sair para Maceió nem qualquer outro município”, confidenciaram.

Rosilene dos Santos Gonçalves, 20, está cursando o 3º período de Letras. Sua paixão é gastronomia, mas escolheu Letras porque também sempre quis ser professora. Ela diz estar satisfeita com o curso escolhido, apesar das dificuldades para acompanhar o conteúdo.

Maria José Gonçalves, 31, está no 3º período de Pedagogia e Raqueline dos Santos Gonçalves, 19, no 1º período do mesmo curso. A mais velha dos 14 irmãos, Maria José lembra-se das dificuldades que a família enfrentou para elas concluírem o ensino médio. “A gente morava mais distante e andava uns quatro quilômetros a pé para chegar à escola. Quando chovia, tínhamos de passar por dentro do rio, com a água quase no pescoço. Como ninguém sabia nadar, a gente pegava uma corda e um pedaço de madeira para conseguir atravessar”, contou.

Rosivânia dos Santos Gonçalves, 17, concluiu o ensino médio em 2014, fez Enem, inscreveu-se no Sisu 2015 e foi chamada para o curso de Pedagogia, mas vai fazer Enem novamente este ano para Engenharia. “Quero tentar mais uma vez”, disse a mascote das seis irmãs universitárias.

Além de Rosineide, as quatro irmãs que já estão na Universidade também conseguiram bolsa pró-graduando [destinada a alunos com vulnerabilidade econômica] em 2014, o que ajudou e muito a permanência delas na Ufal. As meninas moram com a família no povoado Moreira de Baixo. As cinco andam 1,5 quilômetro a pé, de casa até a BR-423 e depois pegam transporte para Delmiro Gouveia. Só com passagem, gastam R$ 50,00 por dia.

“Passamos o dia na Ufal. Como o dinheiro é curto e não dá para pagar almoço, levamos nossa marmita de casa. Comemos frio mesmo porque não temos onde esquentar, mas estamos ansiosas para a abertura do Restaurante Universitário”, contaram.


Cômodo que seu Ednaldo tem orgulho de dizer que é a sala de estudo dos filhosUm pai incentivador e orgulhoso

José Ednaldo Gonçalves, 51, conhecido na redondeza como Naldo de Eliseu, mesmo não tendo tido a chance de estudar quando jovem, sempre incentivou os filhos, para que conquistassem uma vida melhor e com menos sofrimento, diferente da sua. Ele trabalha como pedreiro e marceneiro e costuma dizer que seu maior desgosto é não ter conseguido estudar. Seu Ednaldo fez até a antiga 4ª série do fundamental e chegou a começar o telecurso, mas não conseguiu concluir. “Tinha de trabalhar muito para sustentar a família”, desabafou.

Seu Ednaldo lembra com tristeza nos olhos o sacrifício de Rosineide para concluir a escola e de quando entrou na Ufal. “A gente morava mais distante e ela tinha de andar seis quilômetros de bicicleta, à noite, até chegar à pista, para depois pegar uma condução. Muitas vezes, eu saía do serviço cansado, sem tomar banho, mas ficava em Delmiro esperando para voltar com ela para casa. Ficava triste quando as pessoas duvidavam que ela estivesse estudando. Alguns chegavam a dizer que ela poderia estar em qualquer lugar, menos na aula. Mas eu confiava em minha filha e aí está a prova”, contou.

Foi nessa época que ele decidiu começar a construir a casa onde eles moram atualmente. A família toda ajudou. Os filhos faziam os blocos, mexiam a massa e ajudavam o pai nos fins de semana. “Fizemos uma sala e um quarto aqui no Moreira de Baixo porque ficava mais perto para ela ir à Ufal. Ela sofria muito na época da chuva, era muita lama. Algumas vezes eu chorei vendo minha filha tão sacrificada”, disse, emocionado.

Por muitas vezes, seu Ednaldo era chamado de tolo pelos parentes por incentivar seus filhos a buscarem um futuro melhor. “Muitos diziam que eu tinha de colocar eles na roça, que é futuro de pobre, mas eu prometi que meus filhos iam estudar e assim estamos fazendo. Não tive oportunidade, mas trabalho duro para dar o mínimo a minha família e eles também me ajudam. Todo serviço da casa e da roça são meus filhos e minha esposa que fazem. Invisto tudo nos meus filhos para eles terem uma vida melhor”, revelou, com a voz trêmula.

Pois é, as universitárias e os irmãos, quando não estão na aula, vão para roça, fazem bloco para construção e, ainda, artesanato, no caso das meninas. “Quando a gente vai muito para roça, fica com as mãos tudo cheia de calo, grossas”, contou Maria José.

Rosineide complementa: 'Eu sou uma futura engenheira, não quero trabalhar na roça, por isso estudo muito para mudar meu futuro e da minha família”.

Expectativa

Os rapazes, filhos de seu Ednaldo, ainda não quiseram tentar uma vaga no ensino superior. O mais velho dos homens, Roberlândio dos Santos Gonçalves, concluiu o ensino médio e foi para o Rio de Janeiro trabalhar. Hoje está casado e não sabe quando volta para perto da família. Já Rosinaldo dos Santos Gonçalves, 18, terminou o ensino médio em 2014 e quer seguir o caminho do irmão. Decidiu ir para o Rio de Janeiro, mesmo contra a vontade do pai e das irmãs.

A expectativa da família é que os outros três meninos, Reginaldo, que começou o 1º ano do ensino médio este ano, Ronaldo, que está na 6ª série, e o mais novo, Israel, de 7 anos, sigam o exemplo das irmãs e trilhem o caminho para a Ufal. As três meninas ainda menores são Roseli, 13, Regina, 14, e Raiane, 9. Todos estão estudando em escolas de Delmiro.

Essa é uma história que poderia estar nas páginas de um romance, mas é real e está sendo mudada a partir da chegada da Ufal no Sertão. A família de seu Ednaldo é um exemplo de confiança e de coragem. Mesmo com todas as dificuldades estampam um sorriso no rosto e acreditam que amanhã vai ser outro dia.