Pesquisadores resgatam prontuários da época do Navio Hope

Equipe recupera 862 documentos que fazem parte da memória do Hospital Universitário

26/02/2013 09h32 - Atualizado em 14/08/2014 às 10h31
Lúcia Enoe, Rosaline Mota e Samela Rouse conduzem pesquisa de recuperação documental do Hupaa

Lúcia Enoe, Rosaline Mota e Samela Rouse conduzem pesquisa de recuperação documental do Hupaa

Myllena Diniz – estudante de Jornalismo

Quarenta anos após a chegada do Navio Hope a Maceió, pesquisadores de Biblioteconomia da Universidade Federal de Alagoas recuperam acervo documental referente ao período que marcou a implantação do Hospital Universitário Professor Alberto Antunes (Hupaa) como anexo ao Campus A. C. Simões, em Maceió. Durante um ano de atividades de pesquisa e extensão, o grupo analisou mais de 860 prontuários da época e possibilitou a conservação, a preservação e o resgate da memória do hospital-escola.

A chegada da embarcação estadunidense à terra dos marechais simbolizou avanço no atendimento médico da população local e auxiliou na formação de diversos profissionais alagoanos ligados à área da saúde. Parte dessa história está contida nos prontuários elaborados em 1973, ano em que o Navio Hope aportou no Porto do Jaraguá, em Maceió. Para preservar os documentos e a própria história do hospital, a professora Rosaline Mota coordenou trabalho que uniu técnicas e ferramentas de informação e de informática, com a finalidade de preservar, catalogar e digitalizar o material recuperado. Também participaram do projeto as alunas Samela Rouse de Brito e Lúcia Enoe, ambas de Biblioteconomia.

De acordo com a professora, o projeto surgiu da necessidade de armazenar adequadamente documentos de grande importância para o Hupaa. “Em conversa com a médica Márcia Rebelo, soubemos da existência de prontuários da época em que a expedição Hope esteve em Alagoas. No entanto, eles estavam em local muito insalubre. Além disso, os armários desses documentos estavam enferrujados e o material estava submetido à temperatura não recomendada. Ou seja, condições totalmente inadequadas para conservação de acervo”, explicou Rosaline Mota.

Prontuários: fonte documental

A recuperação de prontuários elaborados há quarenta anos pode não ter mais implicações na saúde dos pacientes aos quais os documentos se referem, mas as informações contidas nesses formulários podem auxiliar estudantes e profissionais de áreas como Medicina, Enfermagem, Odontologia e História.

O prontuário é a principal fonte de comunicação entre profissionais que assistem um mesmo paciente. O documento possui todos os dados dos pacientes, desde sua internação até a saída do hospital, e organizam informações sobre procedimentos relacionados à terapia de medicamentos. No entanto, o material analisado pelo grupo de pesquisadoras da Ufal possui uma característica que o diferencia de outros semelhantes: faz parte da história do hospital universitário e de um momento de transformação nas instituições de saúde alagoanas.

Identificação, higienização e armazenamento dos documentos

Segundo Rosaline Mota, o trabalho foi responsável pela coleta de todos os prontuários realizados durante a estadia do navio em Maceió, de fevereiro a novembro de 1973. “Nossa principal proposta foi identificar e fazer todo o processo de higienização dos documentos, com a colaboração do professor Iuri Rizzi. No total, foram analisados 862 prontuários”, revelou.

Agora, o grupo utiliza ferramentas tecnológicas e dá início ao processo de digitalização dos documentos, que possuem quase meio século de existência. “Nós desenvolvemos um banco de dados por meio do qual o material será disponibilizado. Vamos trabalhar com a representação temática e descritiva dos conteúdos dos prontuários, o que é fundamental para o processo de recuperação e de análise da informação”, ressaltou Rosaline.

A professora também destacou que a política de acesso aos documentos ainda não foi definida, mas garantiu: “Esse material não estará disponibilizado para o público em geral, porque é extremamente sigiloso. As informações contidas nesses prontuários são sobre a saúde dos pacientes e não podem ser divulgadas. Dessa forma, os dados só serão disponibilizados para estudantes da área da saúde, profissionais do HU e historiadores”, ponderou.

Próximos passos

Para desenvolver o trabalho, a equipe também precisou driblar a língua inglesa. Segundo a bolsista do projeto, Samela Rouse, 90% dos prontuários estavam em inglês. “Nós tivemos que pesquisar muito sobre a linguagem de saúde na literatura inglesa, pois encontramos algumas siglas que são diferentes das nossas. Em alguns documentos, por exemplo, encontramos a expressão ENT, que significa otorrinolaringologia, por fazer referência às palavras ear [ouvido], nose [nariz] e trhoat [garganta]”, salientou a estudante.

A partir desses desafios, o grupo elaborou vocabulário controlado da língua inglesa que também será utilizado no banco de dados desenvolvido para estudiosos. Além disso, também há perspectivas de parcerias com profissionais da Faculdade de Letras (Fale), com o objetivo de que o material seja traduzido em sua plenitude.

A coordenadora da pesquisa, Rosaline Mota, também revelou o objetivo final do projeto. “A nossa previsão é terminar todo o trabalho entre julho e agosto deste ano. Nossa intenção é doar todos esses documentos para o Memorial do HU, que está sob a responsabilidade da Direção de Ensino, Pesquisa e Extensão do Hospital, coordenada pelo professor Fernando Guimarães”, enfatizou.

Política de preservação documental

Além de contribuir com o resgate da memória do Hupaa, o trabalho de recuperação documental também é um salto para o universo acadêmico. A conversação de prontuários elaborados por profissionais do projeto Hope é fonte de aprendizagem para estudiosos de diferentes áreas, como as Ciências Humanas, Sociais e Biológicas.

Para Lúcia Enoe, colaboradora na pesquisa, o contato com documentos que fazem parte da história de uma instituição serve de estímulo para novos desafios. “Nosso trabalho vai contribuir com o objetivo do Memorial, que é a reconstituição e a preservação da memória do hospital. Então, eu me sinto lisonjeada por fazer parte desse processo e contribuir de alguma forma. A pesquisa mostra que a Biblioteconomia é capaz de fazer um projeto como esse. Inclusive, eu me apaixonei pela área de preservação documental na área da saúde e pretendo continuar nesse segmento”, destacou a estudante.

Apesar de ser fruto de um projeto de iniciação científica, o trabalho mostra como teoria e prática caminham juntas. Rosaline Mota esclareceu que os esforços têm como grande beneficiada a população alagoana.

“A pesquisa tem uma grande contribuição social, pois faz com que os documentos estejam no local certo, no ponto certo e ao alcance dos profissionais. Os prontuários são tão importantes que precisam estar sempre de forma organizada, para que os profissionais de saúde cumpram seu trabalho adequadamente, das unidades básicas de saúde ao HGE [Hospital Geral do Estado]. Infelizmente, ainda falta política de organização de documentos no Brasil. Todo e qualquer hospital tem que preservar os documentos da época de atendimento em papel. Mesmo que já existam prontuários eletrônicos, nós não podemos esquecer o legado histórico”, lembrou a professora.

Todos os documentos recuperados pelo grupo serão acondicionados em capas apropriadas para conservação. Também serão protegidas as capas originais dos prontuários do acervo.

O navio Hope

A expressão Hope significa “oportunidade de saúde para os povos do mundo”. Criado em 1960, nos Estados Unidos, o projeto surgiu em meio à Guerra Fria e simbolizou a disputa pela hegemonia entre países socialistas e capitalistas. Apesar de ser fruto de uma ideologia que buscava disseminar a superioridade estadunidense, o navio Hope capacitou profissionais da saúde de países carentes ao redor do mundo. Na América do Sul, ele aportou no Peru, no Equador, na Colômbia e no Brasil.

Com equipe de médicos, dentistas e enfermeiros, a expedição levou capital científico e instrumentos necessários a um processo educativo teórico e prático dos profissionais dos países onde aportou. Em cada território, o Hope só atracou em um Estado, mas no Brasil foi diferente. Após passagem por Natal (RN), em 1972, o navio chegou a Maceió, em 1973.

A sua vinda para Alagoas exigiu a ampliação do Porto do Jaraguá e possibilitou o ensino das mais recentes técnicas da ciência médica norte-americana. Os profissionais estadunidenses também ficaram responsáveis pelo atendimento de casos especiais de saúde. No projeto, estiveram envolvidos 400 profissionais da saúde do Nordeste, com 95% das vagas destinadas à população alagoana.

O projeto também está relacionado ao início das atividades do Hospital Universitário, que teve origem com a criação da Faculdade de Medicina, em 1950. Em 1954, a primeira turma de médicos contou com o apoio da Santa Casa de Misericórdia, que cedeu parte de sua estrutura para a prática dos alunos. Com o surgimento da Universidade Federal de Alagoas, em 1961, foi elaborado projeto que previu a implantação do hospital-escola na Cidade Universitária. A vinda do Hope para Maceió – fruto de intercâmbio científico entre a Ufal, a Secretaria de Saúde do Estado e a Universidade de Harward – possibilitou o desenvolvimento de programas de capacitação para profissionais do Hupaa.