Política de Graça: um bom exemplo de político


14/09/2010 11h05 - Atualizado em 13/08/2014 às 02h11

Por Fernando Coelho – Gazeta de Alagoas*

Não bastasse ser um dos maiores escritores da literatura brasileira de todos os tempos, Graciliano Ramos (1892-1953) foi também um político exemplar. De 1928 até abril de 1930, o autor de Vidas Secas exerceu o cargo de prefeito na cidade de Palmeira dos índios e aplicou na administração pública o mesmo rigor que destinava ao trato com a palavra. Ao final do primeiro e do segundo anos de seu mandato, o romancista elaborou dois relatórios de prestação de contas que entraram para a história da política nacional. Com uma linguagem clara e por vezes irônica e sarcástica, ele produziu uma verdadeira lição de transparência diante da máquina pública. Nesta edição, a Gazeta traz depoimentos de pesquisadores, acadêmicos, artistas e juristas sobre esse exemplo político pertinente, que deve estimular a reflexão em todos nós, (e)leitores, às vésperas de mais uma eleição. Não deixe de conferir.

Um prefeito que toda cidade merece

Antes de iniciar a carreira como escritor, Graciliano Ramos deu mostras de sua verve literária ao relatar com transparência e estilo aspectos de sua rigorosa atuação como gestor público

433 votos. O número foi suficiente para eleger Graciliano Ramos prefeito do município de Palmeira dos índios, no pleito ocorrido no final de 1927. Durante os dois anos seguintes, mais precisamente até o dia 10 de abril de 1930, o futuro escritor percorreria uma singular trajetória política no comando administrativo da cidade então considerada a "princesa do sertão".

Embora já arquivasse uma considerável produção literária em periódicos locais - geralmente assinada com pseudônimos -, Graciliano ainda não tinha iniciado a carreira como contista e romancista que o consagraria como um dos maiores escritores de língua portuguesa e legaria obras antológicas como Vidas Secas, Angústia e São Bernardo.

Nessa época, aos 35 anos, o então 'jovem Graça' voltara de uma temporada no Rio de Janeiro abalado por uma tragédia familiar - dois irmãos, uma irmã e um sobrinho tinham morrido vítimas de uma epidemia de peste bubônica. Uma junção de fatores - como um crime político ocorrido na cidade, um pedido direto do governador Álvaro Correia Paes e a provocação de caciques políticos de manda-chuvas locais o levou a disputar o pleito eleitoral pelo Partido Democrata.

Relatório

Ao final do primeiro ano como prefeito, Graciliano elaborou um relatório sobre sua atuação e o enviou ao governador de Alagoas. No ano seguinte, repetiu o procedimento.

Elaborados num estilo descritivo essencialmente informal, os relatórios se tornaram um marco na história política nacional. Era a primeira vez que um gestor prestava contas de seus feitos e gastos na "máquina pública" de modo tão detalhado e translúcido e numa linguagem quase literária. Além disso, foi graças à destreza textual empreendida nos relatórios que Graciliano recebeu o incentivo e o aval do editor Augusto Schmidt para a publicação de Caetés (1933), seu primeiro romance.

Os relatórios foram originalmente publicados no Diário Oficial do Estado e, logo em seguida, no Jornal de Alagoas e no Semeador. Eles só voltariam ao conhecimento público após sua inclusão como apêndice no livro póstumo Viventes das Alagoas, lançado em 1962. Entretanto, desde a publicação oficial, os relatórios chamariam a atenção e espalhariam a fama do prefeito pelos quatro cantos do País.

Em 1994, a editora Record lançou Relatórios, uma versão ampliada e comentada, repleta de curiosidades, como as cartas enviadas pelo prefeito a secretários, conselheiros e outras autoridades, e de comentários sobre os documentos escritos por escritores, jornalistas e intelectuais. Hoje, mais de 80 anos depois, os relatórios de Graciliano Ramos continuam mais atuais do que nunca. Fala-se até que a obra serviu de inspiração para a elaboração da Lei de Responsabilidade Fiscal, instituída em 2000 com o objetivo de promover o controle e a transparência no uso do dinheiro público nos estados e municípios brasileiros.

*publicado na Gazeta de Alagoas de domingo, 12 de setembro de 2010

 

 

Continua: Eleito sem campanha e sem comício