Muito além das bombas da Marinha

Em todo o litoral norte do Estado, o passado é redescoberto em escavações e nos mergulhos dos banhistas

06/09/2010 11h36 - Atualizado em 13/08/2014 às 02h10
Garrafas de vidro e de cerâmica e resto de garrucha (pistola antiga) achados por banhistas no rio Manguaba

Garrafas de vidro e de cerâmica e resto de garrucha (pistola antiga) achados por banhistas no rio Manguaba

Jorge Barboza – repórter de O Jornal*

 

Em maio deste ano, quando uma bomba da época da 2ª Guerra foi encontrada em Maragogi por operários que trabalhavam em uma obra de saneamento na área urbana do município, a cidade inteira acreditou estar diante de um tesouro de um passado muito mais remoto. Os dois trabalhadores que acharam ó artefato bélico, mesmo desconfiando tratar-se de algo perigoso, pegaram o martelo e chegaram mesmo a abrir um buraco na mina flutuante da Marinha.

 

Felizmente não explodiu - o que aconteceu depois, de forma induzida, detonada pelo esquadrão antibomba do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (Bope). Mas até o momento da explosão, uma multidão já havia se reunido em torno do artefato e exigia que a polícia devolvesse à população a sua "botija de ouro". O operário Jadson José da Silva disse que, depois de passado o tumulto, sentiu um frio na barriga pensando que a tal bola de ferro de mais de um metro de diâmetro podia ter explodido na mão dele.

 

Toda essa confusão tem uma justificativa: há sete anos, em outra obra de saneamento da prefeitura, trabalhadores realmente encontraram uma botija, cheia de moedas de prata e bronze do século 19. Ninguém ficou rico com isso. E parte dessa preciosidade histórica se perdeu, de mãos em mãos, restando algumas moedas hoje sob a guarda do atual secretário de Cultura do município, Jadson Jacó. "Posso dizer que 10% ou 15% do que foi achado ficou conosco", afirmou o secretário.

 

Arqueologia pode resolver antigos enigmas

 

A bomba e a botija tornaram-se o começo e o fim de um mesmo novelo: o passado histórico do litoral Norte de Alagoas, que é pólo de colonização de nosso Estado e do próprio país. O arqueólogo Scott Allen, do Núcleo de Ensino e Pesquisa Arqueológica da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), realizou com sua equipe diversas escavações de Maragogi até União dos Palmares, passando por Japaratinga, Porto de Pedras e Porto Calvo. Ele receia falar do assunto para não criar sensacionalismo e não provocar uma corrida do ouro, afinal, arqueólogos trabalham com objetos encontrados em diversas camadas que vão sendo formadas no solo ao longo dos anos. Se começam a mexer e a remexer a terra, a história perde o contexto e a leitura arqueológica torna-se, praticamente, impossível.

 

"Não há material valioso, nunca encontrei botija nem qualquer coisa de valor monetário. Precisamos proteger esses sítios arqueológicos", disse o professor Allen, que mapeou 19 sítios arqueológicos para traçar a rota dos escravos nos engenhos de cana de açúcar na colonial Porto Calvo (que incluía Maragogi e Porto de Pedras) rumo à liberdade na Serra da Barriga, em União dos Palmares.

 

Acharam-se pedaços de faiança da Ironstone China (a antiga louça inglesa que imitava a ancestral louçaria chinesa) e troncos de senzala. Fora as casas-grandes que resistiram ao apelo industrial das grandes usinas de açúcar. E coisas que a rapaziada que gosta de mergulhar no Rio Manguaba, no antigo Porto das Barcaças, em Porto Calvo, costuma encontrar: vidros de perfume parisiense, garrafas de champanhe e garrafas de cerâmica com o timbre de Cambridge (Inglaterra), moedas, correntes, cadeados e uma infinidade de objetos de vidro, de ferro e de bronze que são, provavelmente, destroços de antigos navios portugueses, espanhóis e holandeses.

 

Como a enferrujada garrucha (espécie de pistola barata, com um tiro por cano, muito utilizada nos anos de 1730 a 1960) exibida pelo açougueiro Edmilson da Silva, de 27 anos. "Quando baixa a maré, encontramos muita coisa sob a areia no leito do rio. Mas como não tem museu em Porto Calvo, já deixei vários objetos no Museu de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte (CE). Estão todos lá catalogados", contou Silva, dizendo que fez um anel para a namorada de urna moeda que encontrou no rio.

 

Um anel de bronze de cerca de 350 anos foi achado no mar de Maragogi, mas seu dono, que não quis se identificar, receia entrar em conflito com o Estado. "Eu e mais dois amigos temos vários objetos, coisas de navios antigos que achamos em nossos mergulhos, mas, por enquanto, está tudo guardado”, afirmou.

 

Outro aficcionado por objetos históricos encontrados no Rio Manguaba e em escavações por toda Porto Calvo, é o comerciante Adelmo Monteiro. "Eu tinha um restaurante e, vez por outra, um turista me perguntava sobre lugares históricos da cidade e como não havia, e nem há, nada em Porto Calvo que registre o apogeu da Colônia, a não ser a igreja de 1610, comecei a correr atrás dessas coisas", contou o dono da Lotérica Domingos Fernandes Calabar.

 

Adelmo colecionou 19 balas de canhão e mais uma porção de garrafas Ironstone China. Além de pequenos tijolos encontrados em escavações feitas para a construção do anexo do Hospital Municipal, localizado no Alto da Força, onde, segundo a História, havia um forte português. "Infelizmente, não há recursos para a criação de um museu", lamentou.

 

Ossadas e artefato indígena são achados em igreja

 

O arquiteto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Sandro Gama, é o responsável pela recente recuperação e restauração da Igreja Matriz de Porto Calvo, cuja conclusão de edificação data de 1610 (ano que aparece no frontispício do templo). Para esse trabalho, realizado no ano passado, ele diz que de imediato pensou na contratação de arqueólogos.

 

"O projeto da igreja precisava resolver problemas do edifício e isso implicava em mexer nas suas fundações. A igreja corria o risco de desabamento. Sabíamos que pessoas eram enterradas ali. Nos anos 1980, já havia sido feito um trabalho de recuperação e muitos ossos foram encontrados e colocados em uma única sala. Então, previ a presença do arqueólogo nesse trabalho, acompanhando todo o processo de recuperação do edifício", contou Gama.

 

O Iphan contratou os serviços do arqueólogo Scott Allen, que realmente encontrou várias ossadas e uma série de material lítico (feito de pedra antiga). A arqueóloga Karina Miranda, da equipe de Allen, explica que cada camada do solo tem uma cor específica, identificando períodos diferentes da História. "Quando o solo é muito remexido, isso se perde. Mas encontramos ossadas primárias, que não foram mexidas. O cadáver estava ali do jeito que foi enterrado."

 

Uma dessas ossadas primárias foi encontrada em frente à torre sineira da igreja. De acordo com a arqueóloga, a análise não foi confirmada, mas uma identificação prévia remete a ossada ao século 19. "Ela foi encontrada da forma como foi sepultada, sem desarticulação dos ossos." Parte do material lítico tem origem provável entre os indígenas que habitaram Porto Calvo, antes mesmo da Colônia. "É um material muito antigo, o que nos leva a crer que a igreja foi construída sobre um local onde houvera uma tribo indígena", afirma Karina. Segundo ela, como não havia ferro nessa época, os índios construíam artefatos cortantes com a pedra.

 

* Matéria veiculada em O Jornal, no dia 5 de setembro